# Blade Runner — A Nostalgia do Futuro #blade-runner #cinema #philip-k-dick #cibercultura Em 1968, Philip K. Dick, escritor norte-americano, nascido em Chicago em 1928, escreveria uma obra que viria a tornar-se num dos ícones da literatura de ficção científica, constituindo-se como objeto de culto entre os amantes desse género literário. A obra, intitulada [Do Androids Dream Of Electric Sheep?](https://www.goodreads.com/book/show/36402034-do-androids-dream-of-electric-sheep) (Sonham os Andróides com Carneiros Eléctricos?), deu origem, em 1982, à estreia de uma produção cinematográfica realizada por [Ridley Scott](http://www.imdb.com/name/nm0000631/): [Blade Runner](http://www.imdb.pt/title/tt0083658/). O filme, ele próprio um caso de sucesso que paulatinamente foi ganhando forma, foi objeto de transposição para várias edições em livro, como é um exemplo a edição em Portugal do livro _Blade Runner Perigo Iminente_, nº 43 da série de Ficção Científica das edições de bolso da Europa América. ![dadoes](https://blot.im/cdn/blog_97a9de12f9134850a32f7b97f05a2130/_image_cache/619d5479-dee2-485b-b63f-79957ee400ea.jpeg) [Philip K. Dick](https://www.imdb.com/name/nm0001140/) insere-se numa corrente literária, algo desprezada, que tem vindo a constituir a base de uma literatura [_cyberpunk_](http://www.cyberpunkreview.com/what-is-cyberpunk/) que conta com nomes como [William Gibson](http://www.williamgibsonbooks.com/), cuja obra emblemática [_Neuromancer_](https://www.theguardian.com/books/2014/jul/28/william-gibson-neuromancer-cyberpunk-books) é reconhecida como percursora deste movimento. Esta subcategoria da ficção científica, de que faz parte a obra _Do Androids Dream Of Electric Sheep?_, lança um olhar fatalista e distópico sobre a interação entre tecnologia e humanidade, estabelecendo uma relação de causa/efeito no caos que se vai instaurando no caldo social, na dependência desmedida do homem em relação à máquina, na reificação do indivíduo. Assim, deste movimento nasce um olhar niilista, uma cultura _cyberpunk_ distópica que caminha em direção a um mundo obscuro e sinistro, em que a máquina pretende substituir o homem. Nasce um campo aparentemente irreconciliável entre a tecnociência e a religião, entre as visões positivista e metafísica do mundo, acentuando o caráter dualista da nossa sociedade ocidental que, desde Descartes, nos vem apresentando a figura de um demónio maligno. Um monstro que parece ser necessário para uma reconciliação do homem com a Natureza e com o Artifício. Nesta organicidade de todo o humano, somos caracterizados pela complexidade, pelo contraditório. Vivemos na _megapolis_ que caminha para o “futuro negro” e para a decadência. Tomamos consciência da complexidade social, cultural e científica das paisagens dos nossos tempos. Mas a arte _cyberpunk_ é também uma arte moral, preocupada com as imperfeições, as falhas, as duvidosas escolhas éticas. ![pkdick](https://blot.im/cdn/blog_97a9de12f9134850a32f7b97f05a2130/_image_cache/5a9a767d-026f-46be-a6a1-c64ab9e97eeb.jpg) _Philip K. Dick_ Entender a literatura de Dick e, posteriormente, o filme _Blade Runner_, implica conhecer um pouco da história de um escritor que viveu uma vida atribulada, atormentada pela morte da sua irmã gémea, poucos dias (40) após o nascimento, que se torna obsessão durante os anos que o fizeram adulto, fazendo-o estabelecer com ela uma permanente relação espiritual (Sammon, 1996). Philip K. Dick cedo se deixa influenciar pela literatura fantástica, pelos [_pulp magazines_](http://www.pulpmags.org/), como são exemplo a _Unknown_ e a _Astounding_. Frequentou apenas um ano a universidade e foi um autodidata. A necessidade de subsistência obrigou-o a escrever de uma forma constante. Para tal, socorreu-se das anfetaminas e dos ácidos. Aumentou a sua produção literária de um modo invulgar, mas viu a fatura devolver-lhe graves problemas físicos e emocionais. Uma visão mística mudaria a sua vida. Um fenómeno que nunca conseguiu explicar e que fez com que vivesse duas épocas em simultâneo: o passado (a era do império romano) e o presente. Este facto, que o levaria a escrever uma interminável obra ([Exegese](https://www.theguardian.com/books/2011/nov/23/philip-k-dick-exegesis), revela-se um dado importante para a compreensão do seu livro _Do Androids Dream Of Electric Sheep?_. A grande paixão que nutria pela música clássica — patente em _Do Androids Dream of Electric Sheep?_(grande parte da ação ocorre numa Ópera) — denuncia uma ponte com o passado, quiça uma ponte com a sua irmã. Não raramente a música surge como essa ligação espiritual a alguém que se perde. Curiosamente, Philip K. Dick abraça o passado e o futuro como uma grande ruína que o vai consumindo, contribuindo para uma obra esotérica, enigmática e carregada de simbolismos. ![unknown](https://blot.im/cdn/blog_97a9de12f9134850a32f7b97f05a2130/_image_cache/189db310-1111-454a-a1fa-dad446212805.jpg) _Primeiro número de Unknown (capa por H. W. Scott)_ ![astrounding](https://blot.im/cdn/blog_97a9de12f9134850a32f7b97f05a2130/_image_cache/5e85814c-e0f5-4931-a518-55156e56cd32.jpg) _Astounding, Jan 1930_ _Do Androids Dream Of Electric Sheep?_ é um trabalho dramático, uma reflexão sobre a metamorfose do indivíduo numa sociedade que caminha para uma saída puramente tecnológica. Uma sociedade cada vez mais híbrida. Esta diversidade que procuramos evidenciar, que temos urgência em denunciar, e que se manifesta e exprime na cibercultura através das figuras pós-humanas — os [_cyborgs_](http://project.cyberpunk.ru/idb/cyborgs.html) –, que em _Blade Runner_ (assumimos aqui o filme de Scott como a incorporação do legado de Dick) são representados pelos _replicants_ Nexus-6. Estas máquinas da cibercultura representam o mesmo papel dos bestiários da Idade Média. Dão a ver o diferente, o exótico, o bárbaro. Dão a vê-lo com o intuito de melhor o domesticarmos. Mas poderemos nós ver um futuro em _Blade Runner_ que possa ser, igualmente, esta reinterpretação do passado, esta urgência em justificar todo o mal que vai sendo deixado para trás? Philip K. Dick procura diferenciar o ser humano autêntico da máquina reflexiva (andróide). Para ele, andróide é metáfora de pessoa fisiologicamente humana, mas com comportamento desumano. Esta obsessão pelo demente não pode ser dissociada da experiência da 2ªGuerra Mundial. Para Dick, os Nazis eram um grupo demente. Mentes de tal forma emocionalmente defeituosas que a palavra humano não se lhes aplicava. Esta frase, retirada dos diários das [SS](http://pt.wikipedia.org/wiki/Schutzstaffel) escritos na Polónia, foram uma importante fonte de perturbação para Philip K. Dick: > We are kept awake at night by the cries of starving children (Sammon, 1996: 16). Segundo Dick, esta demência alastrar-se-ia a todo o mundo após a 2ªGuerra Mundial, tornando a sociedade cada vez mais virada para a violência e a falta de ética. Para que possamos melhor entender a génese da sua obra _Do Androids Dream of Electric Sheep?_, deve referir-se que a mesma foi escrita mesmo a meio da Guerra do Vietname. ![nexus6](https://blot.im/cdn/blog_97a9de12f9134850a32f7b97f05a2130/_image_cache/beb4bc0b-90f4-4e95-8731-61d4dbb026fe.jpg) _Roy Batty, um Nexus-6, papel desempenhado por Rutger Hauer_ ## BLADE RUNNER — PERIGO IMINENTE A adaptação do livro para filme vê os seus primeiros contornos serem desenhados em 1969, um ano após a publicação da obra escrita. Os primeiros interessados foram o realizador Martin Scorsese e o crítico Jay Cocks. Ficaram encantados com as paisagens morais e visuais da narrativa distópica, da mensagem subjacente em cada linha de texto. Contudo, não passou de um namoro que não produziu frutos. Mais tarde, em 1974, Robert Jaffe, filho do californiano Herb Jaffe, CEO da produtora Herb Jaffe Associates, escreve um argumento para adaptar o livro de Dick ao grande ecrã. Depois de Dick o ter lido, a única palavra que lhe surgiu foi “horrível”. Após várias tentativas de melhorar o argumento, com a ajuda do próprio escritor, o projeto vê as suas pretensões gorarem-se em 1977. Nesse mesmo ano, um outro homem interessa-se pela obra e começa um trabalho que será o responsável pela produção e realização de _Blade Runner_, na versão de Ridley Scott. O seu nome é [Hampton Fancher](https://www.imdb.com/name/nm0266684/). ![hampton fancher](https://blot.im/cdn/blog_97a9de12f9134850a32f7b97f05a2130/_image_cache/c091e44a-2833-4eb3-92c1-466ec3c08938.jpeg) _Hampton Fancher_ Apesar da fidelidade inicial de Fancher em relação à obra de Dick, o primeiro guião sofreu numerosas modificações, fruto do reduzido orçamento inicial: > I didn’t really create much of a world [in the initial screenplay]. You could have pretty much taken my first draft and put it on a (theatrical) stage. There weren’t many exterior scenes, there wasn’t much hardware. It was basically a small drama, [one originally projected to be] done for $9 million (Sammon, 1996: 36). Mais tarde, talvez motivado por profundas preocupações ecológicas, Fancher faz com que o argumento vá sofrendo consideráveis alterações, desviando-se da obra original. Destacamos apenas algumas: - As cenas passadas em San Francisco transferem-se para Los Angeles - O papel de Iran (mulher de Deckard) dilui-se num decréscimo de importância - Rachel, a namorada de Deckard, ganha um protagonismo inusitado ## UMA VISÃO DISTÓPICA Nesta visão distópica do futuro, o “Perigo Iminente” é o perigo da replicação. Tudo passa a ser possível num mundo que se vê desprovido de Deus: “Se Deus morreu, então tudo é possível”, anunciava Dostoievsky em _Crime e Castigo_; em _Blade Runner_, aparentemente, “Se tudo é possível, então Deus morreu” (Rosa, 2007: 7). Esta forma de religiosidade esteve sempre presente, de alguma forma, na obra de Philip K. Dick. Como acentua Herlander Elias, “(…) há um perigo subentendido no filme, o de uma tecnologia capaz de gerar humanos tão ou mais genuínos que os próprios humanos […], algo que não ficou resolvido na modernidade, a visão negativa de um futuro, ainda assim romântico (…)” (Elias, 2007). Deus morre porque Dr. Tyrell (o “pai” dos andróides) é morto pelo líder dos _replicants_, Roy Batty. E “deus” é a palavra que existe para designar o que existe de mais transcendental (Cavalli, 2006). Roy Batty é quem faz a mediação entre duas consciências, serve como lembrança do que foram os homens no passado, na busca do seu Deus. Assim, Deckard é o sujeito pós-moderno, com identidades que mutam de acordo com o momento. Roy é o sujeito sociológico moderno, com um “eu” definido artificialmente e dotado de razão. Há um projeto da ciência que importa trazer à luz da temática: o do robô como projeto epistemológico (Elias, 2007). Dick, no seu ensaio intitulado _O andróide e o humano_, diz: “(…) o que define andróide e humano não é a sua origem, maquínica ou orgânica, mas sim as acções, rígidas ou empáticas, perante os seus semelhantes. Um andróide pode agir humanamente tanto quanto um humano […] pode comportar-se como um andróide” (Dick, 2006: 13-14). Ora, o que está em causa em _Blade Runner_ é o facto de os _replicants_ serem sempre réplicas que estão tecnologicamente acima dos humanos e que têm como objetivo tornar o mundo num habitat _ciborgue_. E como Dick sugere em _O andróide e o humano_, estamos perante um campo do real por via da diluição de fronteiras. Se aquilo que define um andróide e um humano são as suas ações, poderá um andróide ser mais humano do que o próprio humano? Aparentemente, é este dilema ontológico que _Blade Runner_ não resolve, pois para que os _replicants_ possam ser mais humanos do que os próprios humanos falta-lhes tempo de vida, falta-lhes _lifespan_(Elias, 2007: 232). > Existem no Universo coisas frias e desumanas a que dei o nome de‘máquinas’. O seu comportamento assusta-me, especialmente se imitam o comportamento humano tão bem que me deixam com a sensação desconfortável de que estas coisas estão a tentar fazer passar-se por seres humanos sem o serem (Dick, 2006: 77). _Rachel’s Song (nunca foi usada no filme; era suposto ser usada nas cenas em que Rachel via crescer as suas dúvidas sobre a identidade; em sua vez foi usado o tema “Memories of Green”)_ ## A CIDADE DA MÁQUINAS Em _Blade Runner_, Los Angeles é uma cidade de máquinas, uma cidade que deixou de possuir instrumentos capazes de funcionar em função do homem. Na cidade do futuro que é Los Angeles em 2019, são as máquinas que substituem os humanos. Na Los Angeles do século XXI, a tecnologia não foi capaz de resolver os problemas do homem. Como poderão réplicas de humanos, feitas à sua imagem, resolverem elas próprias problemas que os seus criadores não foram capazes de resolver? Este paradoxo encerra toda a tecnologia, ou melhor, o seu uso. O que fazemos com ela. Para onde caminhamos, com as máquinas do nosso descontentamento? Que máquinas podemos construir para fazer de nós melhores humanos: os _replicants_, o Nexus-6, ou alguma versão mais evoluída? Se os _replicants_ de _Blade Runner_ têm como missão salvar o mundo, porque vivem apenas 4 anos? > A Los Angeles do filme é no fundo um ‘lugar-máquina’, um território ciborgue simultaneamente real e virtual, orgânico e máquina, sano e esquizóide, uma arena de multiplicidades, de construções de desconstruções (Elias, 2007: 234). Tornámo-nos mestres e possuidores da Natureza, diz Descartes. O homem constitui-se homem ao dela retirar-se. Em _Blade Runner_ tudo termina em extermínio. Não só a Natureza se vê destruída, mas também o homem se vê destruído por ele próprio, pela técnica que o corrói. A própria técnica se auto-anula: _Deckard_ (uma máquina) ‘mata’ a _replicant strip-teaser_ (outra máquina) (Elias, 2007: 235). Há um caráter predatório incontornável que faz de _Blade Runner_ uma visão transversal da natureza humana verdadeiramente notável. Precisamos de monstros para nos sentirmos mais humanos, diz José Gil (Elias, 2007 : 236). _Blade Runner_ passa-se num ambiente poluído por um conflito nuclear, um lugar onde a poeira radioativa é omnipresente. Esta substância destrói a maior parte da vida animal. Muitos humanos morrem ou ficam mentalmente incapacitados. A população restante caminha para a esterilidade. Alguns homens preservam a virilidade e deixam a Terra em direção a planetas saudáveis. [Rick Deckard](https://bladerunner.fandom.com/wiki/Rick_Deckard), o polícia — o _blade runner_ — é um dos infelizes que permanece no inferno poeirento. A sua função é aniquilar os andróides (“andys” no livro) que tentam misturar-se com os seres humanos. Os andróides estão equipados com todas as emoções humanas exceto a empatia. Foram desenhados para funcionarem como armas durante o conflito nuclear, mas viram as suas funções serem reprogramadas para se tornarem os obreiros do programa de colonização. Deckard não deverá deixar que os andróides tentem ocupar o lugar que pertence aos humanos. Deverá aniquilá-los. Ao fazê-lo, estará ele a tornar-se num andróide? Mas o mais interessante de _Blade Runner_ é o facto de nós, os humanos, representarmos a faceta pós-industrial e niilista da sociedade. Nós somos a solidão, o individualismo que deixa por terra as reivindicações do passado. A luta perdeu o seu caráter militante. São agora os andróides quem representa os valores das luzes, a racionalidade, a luta pelos ideias. Os humanos são as pequenas narrativas, os andróides as grandes. Os andróides simbolizam o romantismo, os humanos a decadência. Uma inversão no caminho de reificação do homem que o torna frio, desolado, descrente, e um paradoxo, pois os andróides são construídos à sua imagem. Esta inversão temporal, que abre uma brecha na linearidade, faz com que pensemos seriamente na direção que o nosso rumo leva…. e isto nos inícios da década de 80 do século passado era já uma preocupação. O andróide é a única saída para a reconstrução e nós, os _Deckards_ deste mundo, aniquilamos a sua investida. Mas, se tecnologia significa o funesto progresso — a grande premissa de base de _Blade Runner_ -, como podem os andróides, filhos desta, simbolizarem a esperança? É esta inversão de lógicas que faz de _Blade Runner_ um exercício de reflexão insofismável e delicioso. Um conflito narrativo que coloca a resignação em confronto com a luta pela vida. E os sinais dessa resignação são evidentes: o alcoolismo de Deckard, a depressão e solidão de J.F.Sebastian. _Uma das peças mais assustadoras, convincente no que diz respeito à mistura de film noir e de Sci-Fi distópica_ O filme tem resistido ao tempo, parecendo hoje beneficiar de um reconhecimento que à época não fora possível, muito devido ao maravilhoso trabalho de Ridley Scott. O seu filme, realizado em plena década de 1980, ainda hoje é atual, comovedor e beneficia de uma autêntica legião de seguidores incondicionais. ![ridley scott](https://blot.im/cdn/blog_97a9de12f9134850a32f7b97f05a2130/_image_cache/b05bfbf2-3833-4cc9-ae4a-daaf946d8b39.jpg) _Ridley Scott_ ## UMA OBRA DENTRO DE OUTRA OBRA > The music in Blade Runner is so devastatingly beautiful. Yet at the same time it is many other things. Tacky, ominous, haunting, sad. Vangelis did an extraordinary job; his score became a major character (Rutger Hauer cit. por Sammon, 1996: 267) Cinematograficamente, uma banda sonora original faz parte do processo de pós-produção. Aí, onde se decidem as sequências, onde se decidem os planos, também se decide o _score_ musical. Blade Runner tinha a sua pós-produção agendada para julho de 1981 e estavam previstas 34 semanas de trabalho. Como refere Sammon, é esta uma das fases mais importantes de um filme: > It’s been said many times that a motion picture is made or broken in the editing room. Blade Runner was no exception (Sammon, 1996: 268) O argumento de _Blade Runner_ é uma história muito difícil de contar. A complexidade da sua mensagem requer uma banda sonora capaz de transmitir toda a atmosfera psicológica envolvida em cada uma das cenas. Ridley Scott recorreu à ajuda de [voice-over](http://en.wikipedia.org/wiki/Voice-over) para explicar certas cenas, mas mesmo assim foi insuficiente e até criticado. Quem poderia escrever um _score_ à altura de tal responsabilidade? ## EVANGELOS O. PAPATHANASSIOU (VANGELIS) ![vangelis](https://blot.im/cdn/blog_97a9de12f9134850a32f7b97f05a2130/_image_cache/da629259-18fb-471d-a4e9-30a44ff062a2.jpg) _Evangelos O. Papathanassiou_ [Vangelis](http://elsew.com/) estava longe de ser hipótese. Terry Rawlings, responsável pela edição de som de _Blade Runner_, diz: “I never thought that we were going to use Vangelis to start with” (Sammon, 1996: 272). Muita música tinha sido ouvida, incluindo a de Jerry Goldsmith. Os primeiros contactos com Vangelis foram estabelecidos quando este compunha um _score_, vencedor de um Óscar, para o filme _Chariots of Fire_ (1981). Quando Vangelis viu um extrato “em cru” de _Blade Runner_ ficou emocionado e aterrorizado. Emocionado pela beleza do filme, aterrorizado pelo facto de o filme prever um futuro assustadoramente plausível, futuro esse que Vangelis acreditava vir a ser possível. Evangelos O. Papathanassiou (Vangelis) nasceu em 1943, em Volos, na Grécia. Cresceu em Atenas. Autodidata, incapaz de ler música, compôs a primeira peça para piano aos 4 anos. Em 1968, após a instauração da ditadura militar no seu país, vai para Paris. Aí, é um dos fundadores da banda _Aphrodite’s Child_. A canção mais popular da banda, _Rain and Tears_, se for invertida, revela uma feliz coincidência com uma famosa expressão de Roy Batty (personagem de BR): “Tears in Rain”. A reputação de Vangelis como compositor de música eletrónica era grande. Ele era um mestre do sintetizador. Durante os anos de 1970, compôs várias peças para programas de televisão e filmes franceses. Colaborou com Frederic Roussif, compondo a música para _Apocalypse Des Animaux_ e _Opera Sauvage_. Em meados de 1970 vai para Londres, onde constrói um estúdio de 24 pistas, o Nemo Studios. Foi nesse estúdio que Vangelis compôs a Banda Sonora Original de _Blade Runner_. ![nemo studios](https://blot.im/cdn/blog_97a9de12f9134850a32f7b97f05a2130/_image_cache/48f83296-9e98-4f23-8110-a266dd27e98d.jpg) _Vangelis, rodeado de sintetizadores, no Nemo Studios_ A primeira preocupação de Vangelis foi absorver o “sentido” do filme. Posteriormente, conversou com o Ridley Scott para perceber se era capaz de corresponder às suas expectativas. Vangelis ficou imediatamente impressionado com _Blade Runner_. Estabeleceu-se logo aí um vínculo emocional muito forte. Que tonalidades melhor serviriam o filme? Vangelis escolheu um registo que pode ser apelidado de “futuristic nostalgia” (Sammon, 1996). Uma vertiginosa mistura de romantismo ousado, nefastos ruídos eletrónicos, delicadas matizes celestiais, blues de sarjeta e uma melancolia de cortar a respiração. O _score_ de Vangelis transformou-se num dos mais notáveis e tristes registos para um filme de ficção científica. Entre 1978 e 1982, Vangelis estava fascinado com instrumentos de percussão. Experimentava misturá-los com sintetizadores para conseguir um efeito acústico-electrónico. Sinos e campainhas estavam por todo o lado. Esses instrumentos de percussão tornaram-se parte integrante da música de _Blade Runner_. Vangelis tinha que lidar com um espaço demasiado aberto que Ridley Scott lhe legara. Uma mistura de passado e futuro, um mundo onde o novo e o surpreendente estavam de costas voltadas com o que restava, a essência da nostalgia, aquilo que antes era popular na Terra. ## UM LONGO PERCURSO Normalmente, a produção de uma banda sonora de um filme é um processo caro e rápido, envolvendo um grande número de intervenientes. No caso de _Blade Runner_, é Vangelis quem compõe, arranja, produz e interpreta. Primeiro improvisava a melodia básica de cada faixa, gravava-a em fita magnética, e refinava-a acrescentando outros sons e outras texturas por cima da faixa inicial (imitando o processo de _layering_ que Scott usava com a matéria-prima do _footage_). A massa musical daí resultante era um produto trabalhado e reformulado, tal como um escultor que esculpe a sua obra. Durante esse processo produzia normalmente só, recebendo visitas pontuais de Ridley Scott ou de Terry Rawlings. Era importante que a sua música fosse aceite como adequada para o filme. A grande controvérsia em torno da Banda Sonora Original sempre esteve relacionada com o tempo excessivo envolvido na sua criação. Em 1982, os créditos finais de _Blade Runner_ indicavam a edição da BSO na etiqueta Polydor Records. Contudo, a BSO só viu a luz do dia em 1994, 12 anos após a exibição do filme. O que teria provocado este atraso? Estaria Vangelis insatisfeito com algo? ## BSO PIRATAS (BOOTLEGS) Claramente, um período de tempo tão longo entre a exibição do filme e o lançamento para o mercado do disco da Banda Sonora Oficial abriu espaço para uma quantidade de gravações e versões que tentaram ocupar esse espaço em falta. Surgiu, primeiro, uma Banda Sonora sem Vangelis. Um cópia, sem alma, do original. Uma banda sonora “replicante”. Mais tarde, três outras gravações foram lançadas para o mercado, incompletas ou ilegais. Entre 1892 e 1994, várias gravações foram colocadas no mercado. Finalmente, em 1994, é lançada oficialmente a BSO intitulada _Blade Runner: Vangelis_ (Atlantic/Warner Music UK). O disco continha 12 faixas separadas (algumas com excertos de diálogos do filme), incluindo muitas das músicas mais populares do filmes como _Love Theme_, _Tales of the Future_, _Memoires of Green_ e _Blade Runner End Title_. Contudo, muitas outras faltavam. Duas delas de forma compreensível, uma vez que _Harps of Ancient Temples_ fora composta por Gail Laughton e _Ogi no Mato_ é uma música tradicional japonesa. **Blade Runner (OST) 1994 Vangelis** _Official Vangelis Score_ 1. Main Titles (3:42) 2. Blush Response (5:47) 3. Wait For Me (5:27) 4. Rachel’s Song (4:46) 5. Love Theme (4:56) 6. One More Kiss, Dear (3:58) 7. Blade Runner Blues (8:53) 8. Memoires of Green (5:05) 9. Tales of the Future (4:46) 10. Damask Rose (2:32) 11. Blade Runner (End Titles) (4:40) 12. Tears in Rain (3:00) Onde estava o sinistro _riff_ de duas notas do sintetizador de Vangelis usado para a cena da morte de Tyrell? (uma pista que um [bootleg](http://pt.wikipedia.org/wiki/Bootleg) de 1993 intitulou _The Prodigial Son Brings Death_). Andrew Hoy explica que não foi devido a nenhum descuido de Vangelis. Como músico, Vangelis sempre se preocupou com a exigência de qualidade dos seus produtos e da satisfação dos seus seguidores. Nesse sentido, ele não incluía todos os temas de Bandas Sonoras Originais nos seus discos. O disco não era uma reprodução fiel da BSO do filme. Não via necessária a inclusão de reprises ou de sons que apenas eram usados para dar mais ênfase a determinada cena. Nos seus discos, Vangelis combinava sempre elementos da BSO com material novo. Apesar de todos estes episódios e atrasos, apesar de algumas incompatibilidades entre argumento e obra original, entre a visão única e perfecionista de Vangelis e a impaciência de Ridley Scott, Philip K. Dick é peremptório: > This is not like anything we have ever seen….It isn’t like anything that has ever been done (Philip K. Dick, author of Do Androids Dream Of Electric Sheep, after beeing shown footage of Blade Runner. From “They Did Sight Stimulation on My Brain”, ny Gregg Rickman) (Sammon, 1996) ## A PLURALIDADE DAS FORMAS CULTURAIS Uma obra de arte é produto de uma época, mas também é produto da vivência e experiência dos seus autores. Conhecer as motivações de Philip K. Dick, conhecer a sua história, revela-se imprescindível para reconhecer sinais importantes na sua obra. Entender _Blade Runner_ passa por entrar no universo de Dick, no mundo dos seus origami, na sua visão abalada por episódios da vida pessoal. Contudo, cada obra de arte reflete muito do mundo em que vivemos: “(…) é sempre possível sublinhar, referindo-nos a uma sociedade histórica concreta, a prevalência de formas de representação, valores, princípios normativos e modelos de comportamento que apresentam entre si uma relativa coerência” (Crespi, 1997: 28). Talvez por isso, Vangelis viu na visão distópica de Philip K. Dick um “seu mundo”. Muito possivelmente, porque o sistema cultural dominante fez uso das suas regras. Mas a relação entre as várias obras aqui apresentadas não será, certamente, uma relação linear. Cada uma das partes influenciou a sua sucessora, inspirando-a e provocando estados de alteridade. Cada um dos autores terá sido capaz de acrescentar uma nova interpretação, uma visão renovada, acentuando, mais uma vez, o caráter renovado da criação (aqui encarada, também, enquanto ato de interpretação). Da escrita de Dick ao argumento de Fancher, dos planos de Scott à música de Vangelis, a polissemia da obra de arte revela-se em cada segundo de vídeo, palavra e som. ## UMA OBRA CONTEMPORÂNEA As mudanças concretas no sistema de significados culturais estabelecem-se ao longo dos tempos. São processos lentos, paulatinos, que podem nascer tanto das condições externas como da criatividade da própria cultura (Crespi, 1997). Assim, uma obra de arte é também capaz de transformar a sociedade, de perdurar para além dos tempos, de perturbar e afetar, de contribuir para uma reflexividade permanente. Neste ato criador, estabeleceram-se as “pontes” necessárias para uma linguagem do seu tempo, uma massa perene do _Zeitgeist_. Esse é o grande poder da obra de arte. A intertextualidade é disso testemunho. A arte, como tecnologia da memória, é um poderoso instrumento que legitima o passado vivido. Nela se inscreve um horizonte temporal que é necessário entender, num processo hermenêutico capaz de juntar obra, autor e fruidor. Contudo, na estrutura poética que antecipa a recordação, ocultam-se as dinâmicas sociais produzidas em determinado tempo (Tota, 2000). Assim, a obra fala por si e requer o seu contexto. É nessa perspetiva que _Do Androids Dream Of Electric Sheep?_, _Blade Runner_ e a Banda Sonora Original de Vangelis devem ser analisadas, para que possamos entender as relações de força nela implicadas. Mas _Blade Runner_ continua atual, pois as preocupações são, na sua essência, as mesmas. Quase quarenta anos não foram suficientes para que, em termos culturais, tenha havido uma grande mudança. Ou será que houve e só muito mais tarde a reconheceremos? ## O CULTO [Philip K. Dick](http://www.philipkdick.com/) [BladeZone: The Online Blade Runner Fan Club and Museum](https://outrasluzes.wordpress.com/page/3/www.bladezone.com) [BRMOVIE.com](http://www.brmovie.com/) ## BIBLIOGRAFIA CAVALLI, V. (2006). A Linguagem Cinematográfica: Modelos Sociais e os Mitos Futuristas. Acedido em 1 de Maio de 2012, em [http://busca.unisul.br/pdf/85979_Vanessa.pdf](http://busca.unisul.br/pdf/85979_Vanessa.pdf) CRESPI, F. (1997). Manual de Sociologia da Cultura. Lisboa: Editorial Estampa. DICK, P. K. (2006). O andróide e o humano. Lisboa:Vega. ELIAS, H. (2007). Néon Digital. Um Discurso sobre os Ciberespaços. Acedido em 29 de Abril de 2012, em: [http://www.livroslabcom.ubi.pt/pdfs/20110824-elias_herlander_neon_digital.pdf](http://www.livroslabcom.ubi.pt/pdfs/20110824-elias_herlander_neon_digital.pdf) ROSA, J. M. (2007). Exegesis ou «Ele está no meio de nós». In Revista FAMECOS, Porto Alegre, nº 34, 2007, (pp. 7-13). Acedido em 29 de Abril de 2012, em: [http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/viewFile/3446/2708](http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/viewFile/3446/2708) SAMMON, P. M. (1996). Future Noir. The Making of Blade Runner. New York: Itbooks. TOTA, A. L. (2000). A Sociologia da Arte, Do Museu Tradicional à Arte Multimédia. Lisboa: Editorial Estampa.