# Círculo em Duas Metades - 1ª Metade (em 4 andamentos)
*texto publicado no livro "85 anos de Associativismo", do Círculo de Arte e Recreio*
#associativismo
**1ª Metade (em 4 andamentos)**
**_Gravissimo_**
Os meus pais – para dizer a verdade, a minha mãe – queriam muito que eu aprendesse piano. Não consigo, ainda hoje, discernir com clareza o motivo pelo qual isso aconteceu, mas suponho que terá sido pelo facto de, em nossa casa, se ouvir muito música clássica. Não aquelas obras densas e sublimes, de Bach ou de Mahler, mas antes algo mais ligeiro. Talvez Mantovani ou Strauss, ou outra qualquer caixa temática da _Reader’s Digest_, como “Toscanini Conducts Concert Favourites”. Foi assim que me vi a subir as escadas que me levavam à sala da Dona Fernanda, uma figura austera, contudo frágil, com dificuldades de visão ampliadas pelas suas grossas lentes em aros de massa transportadas. Para atenuar o choque, o Sr. Torcato, seu marido, entregava-nos aos méritos do Solfejo, com a doçura própria de quem sara feridas, ou de quem nos quer compensar seja lá pelo que for. Quando o Sol baixava uma oitava, entrava na sala do piano da Dona Fernanda e levava palmadas nas mãos quando me enganava no Lemoine ou no Czerny. O livro das partituras de Lemoine era um conjunto de exercícios monótonos e repetitivos que, só passados anos, me apercebi serem fundamentais para quem queria dominar a técnica de percorrer aquelas escalas feitas de preto e branco. Thelonius Monk dizia que as improvisações que fazia na escala de Dó Maior, sendo produtivas, eram fascinantes. Se ao menos soubesse disso naquela época, talvez Lemoine tivesse ganhado um outro encanto.
**_Adagio_**
Naquele tempo, o C.A.R. era para mim o local onde as tercinas exerciam um fascínio que só os imberbes entendiam. Um dia, a Dona Fernanda ficara doente. Não haveria mais lugar a palmadas, antes o olhar de condescendência do Professor Almeida Garret, que do Porto vinha para formar miúdos, como eu, na arte de tocar o Beethoven das obras mais simples. Mas se os 70 do século passado eram mais propícios ao Rock Sinfónico dos Yes ou Genesis, o peso das caixas temáticas (as do _Reader’s Digest_) fazia com que eu, numa réstia de esperança, ainda tentasse singrar no mundo erudito que as salas escuras e de pé direito imponente, do C.A.R, pareciam querer impor. A meio dessa década, eu contava os meninos que comigo aprendiam piano com apenas os dedos de uma mão, com lugar para outros que o quisessem. Das companheiras e companheiros do piano, poucos ou nenhuns nomes cabem na minha memória. Lembro-me de um: a Carmen. Disse-se, mais tarde, que a Carmen ficara a dar aulas de piano. Uma grande fraqueza interior fizera-se sentir, percorrendo-me todas as escalas do meu corpo, quando soube desse facto.
**_Moderato_**
A bondade do provecto Professor Almeida Garret, e talvez a paciência, não foi suficiente para me manter entusiasmado. Os apelos para substituir as horas que passava nas salas do C.A.R., com ligeiro cheiro a um longínquo tempo que não parecia ser o meu, eram incessantes. Foi aí que troquei o Professor Almeida Garret pelo Professor Jorge, cujo apelido não me recordo, mas também não faz falta. O Jorge, como lhe chamavam alguns que o conheciam da música, ensinava “outras cenas”. Georges Moustaki, lembro-me eu. O Jorge era um pianista do tempo do Rock, que ensinava uma coisas muito anos 70, sem ser do Rock. Lembro-me que eram mais as vezes que o Jorge faltava do que as que me dava aulas, numa pequena sala que ficava no átrio da entrada do C.A.R., do lado esquerdo, ao fundo. Talvez a localização quisesse dizer alguma coisa. O Jorge fumava, e saía para fumar, deixando-me entregue às mínimas, semínimas, colcheias e outras figuras cujo nome não direi para não complicar. O Jorge teve pouca sorte, mas eu também não tive melhor, pois o apelo do grosso das fileiras enformadas pelos meus distintos grupos de amigos, que investia numa bola de capão, levantando a poeira do pelado que, no caso da minha trupe, residia junto ao velho estádio e pavilhão do INATEL, e que, não raramente, subia ao muro do Estádio Municipal para se infiltrar pelos buracos da frágil rede de arame, que era mais decorativa do que funcional, venceu. E foi assim que, derrotado pelas massas, deixei de percorrer os caminhos que me levavam às salas do piano.
**_Allegro ma non tropo_**
Mais tarde voltaria a essas salas, para um projeto de caráter experimental com o Canaveira do Vale. O Canaveira dizia que eu tinha uma sensibilidade musical apreciável. E eu gostava de saber disso. Ele, com a sua guitarra jazz, improvisava. Eu, no Kawai ou no Yamaha, já não me lembro bem, tratava de arruinar o seu improviso, pelo menos era o que eu achava. O Canaveira dava aulas de guitarra clássica no C.A.R. e tivera, tempos antes, um projeto musical com o Zé Luís, meu colega do Secundário. Eu assistia, numa das salas, aos ensaios desse projeto. Lembro-me de sonhar que as pessoas chamavam ao Zé Luís o Senhor Saxofonista e que, a partir de determinado dia, em que decidira desistir de tocar, passaram a chamar-lhe simplesmente Saxofonista. Cheguei a pensar que o C.A.R. tinha o dom de fazer com que as pessoas desistissem de tocar, mas depois lembrei-me da Carmen, e isso passou-me.