# Círculo em Duas Metades - 2ª Metade (em 4 ciclos distintos)
*texto publicado no livro "85 anos de Associativismo", do Círculo de Arte e Recreio*
#associativismo
**_Hertz (Hz)_**
O corredor era apertado, como de resto parecia ser aquela casa, embora fosse uma ilusão. Uma espécie de tábua, a todo o comprimento, fazia de bancada. Em cima, uma parafernália de equipamentos, mas que afinal consistia em dois gira-discos e uma pequena mesa de mistura. E também um microfone. Ou dois! Mas não era um corredor, era uma sala em forma de corredor. Na cadeira do meio, Eduardo Freitas, entre um sorriso largo e um ar compenetrado, “punha no ar” uma emissão de rádio a que se dera o nome de Rádio Fundação. Essa mesma emissão que, dias antes, me chegara, com clareza, ao recetor de FM que insistia em despertar-me pelas manhãs. Não me lembro como descobri o improvisado estúdio do C.A.R, mas o certo é que, depressa me vi ao lado do Eduardo Freitas e do Albano Guise, numa emissão de rádio clandestina. Sim, Albano Guise era o outro locutor, que também cabia naquele corredor-estúdio. Havia um Arnaldo, que tratava dos fios, e um Sebastião que, a bem dizer, mandava naquilo tudo, que não era muito, embora fosse o Sr. Jaime o presidente, da rádio e também de um C.A.R. que me trazia outras memórias. Juntei-me à equipa. Ou, para falar verdade, fui adotado. Não que ocupasse muito espaço, mas o corredor pareceu mingar.
**_Kilohertz (kHz)_**
Dali ao novo estúdio, no último piso, – duas assoalhadas à época luxuosas, revestidas a cortiça e separadas por um vidro –, paredes-meias com a sede da Associação de Ciclismo do Minho, foi um abrir e fechar de olhos. O aluguer devia custar um dinheirão, pensei eu, não fora o espaço pertencer à mesma instituição. Os três que emprestavam a voz, eu incluído, o técnico e o diretor – o presidente era uma figura institucional e rara no local da rádio – eram poucos para tão grande espaço. A família cresceu. Chegou o José Garcia, que eu já conhecia de “outras rádios”, e o António Magalhães. Aos da rádio juntavam-se os do ciclismo. O Cruz e o Armindo. O Cruz era, como sói dizer-se, 5 estrelas. Uns anos mais tarde, quando eu tive que cumprir os meus 16 meses de tropa, dava-me boleia até ao quartel, no Porto. Quando soube da sua morte, chorei. O Capela Miguel era omnipresente. Recordo o seu entusiasmo pela Antropologia Cultural (também a partilhava, entusiasmado pelo entusiasmo que me fora passado pelo entusiasmante Professor Janeiro, no antigo Liceu de Guimarães batizado Escola Secundária Martins Sarmento). O Capela Miguel era uma espécie de provedor, não do ouvinte, mas do locutor. Foi o Capela Miguel que me pediu este texto. Disse-lhe que não sabia escrever, mas ele insistiu. Espero que não se arrependa. Depois vieram mais. O Miguel Monteiro – jantava muitas vezes com ele e ele contava-me histórias de África e falava-me da Clepsidra do Pessanha –, o Armindo Magalhães (dizem que, recentemente, hifenizou os últimos dois apelidos e se dedicou a decifrar caras) e o Rui Novo. O Rui Novo era uma espécie de primo que de primo só tinha o facto de ser primo dum primo meu, direito. Era com o Rui Novo que fazia madrugadas, que só acabavam quando a grade de cerveja passava a ser só grade. Também o Vítor Neto, “A Voz”, chegado de África, esse continente enorme como o seu talento. O Vítor Neto era aquele locutor que qualquer um de nós gostaria de ser, exceto que nenhum de nós se chamava Vítor, nem Neto (perdoem-me algum Vítor que me tenha passado despercebido). A Olga Ferreira, a Anabela Santos, a Clarisse Cunha e a Carla Mota. O Bento. Não me lembro se o Miguel Laranjeiro era do tempo do C.A.R., mas julgo que sim. Se não era desse tempo, terá sido de um tempo extremamente próximo, e incluí-lo nesta história não só é justo, como me é aprazível. O Casimiro Ferreira, meu vizinho e macanudo, que, para quem não sabe, também fazia rádio, noutra vertente. Como eu, alias. Na verdade, quem fazia os testes para admissão de novas vozes era eu e o José Garcia, que, por uma questão silábica, passarei a designar por Zé Garcia (não é que vá referir o seu nome novamente). O que significava que os nomes que compunham a Rádio Fundação do C.A.R. eram os nomes que nós quiséssemos que fossem. Lembro-me do Júlio, o Boavida, que foi a testes e reprovou. Não sei porque terá sido. De certeza que não foi por falta de voz, porque ter voz não era condição _sine qua non_. Terá sido por falta de empenho, ou jeito, coisa que não faltava àquela gente. Ou então, terá sido por qualquer outro infortúnio. Desculpa, Júlio.
**_Megahertz (MHz)_**
O C.A.R. era, naquela altura, a minha casa. Fazia lá tudo, menos as refeições, embora muitos pregos no prato tenham sido levados pela Mara, do bar à sala da rádio. O bar que era gerido pelo Sr. José e pela família. Havia a irmã da Mara, cujo nome não me lembro, mas sei que era parecido com um nome normal só que se pronunciava doutra maneira, e o irmão da Mara, cujo nome também não me lembro, mas tenho a certeza que era um nome masculino. Não porque a Mara fosse a minha preferida, mas porque era ela que surgia quase sempre com o bitoque às 2 da manhã, durante a emissão do “Madman Ataca”. Também lá não dormia, se descontar os momentos em que dormitava nas madrugadas da rádio. A rádio, a Rádio Fundação, como muitas outras rádios surgidas nos anos 80 do século XX, era um espaço de liberdade e de criação sem limites. Lá, podia ensaiar – e até plagiar – formatos a que estava habituado. Da Radio Luxembourg, do Bob Stewart, à Radio Caroline, que emitia do barco Mi Amigo e, mais tarde, do barco MV Ross Revenge, em águas internacionais. Da Rádio Comercial (não a do Pedro Ribeiro e seus pares, mas a do Luís Filipe Barros e António Sérgio) à RDP. Mais tarde, a anarquia dos primeiros tempos dera lugar a uma grelha de programação. A família foi crescendo, e foi transformando o corredor mais largo, que atravessava o último piso do C.A.R. e que dava acesso à sala do estúdio, num lugar de vida, convívio, discussão e paixão pela rádio. Uma rede social feita de gente de carne e osso, que transportava para o éter parte de si. Mais tarde, o espaço tornou-se demasiado exíguo para a ambição. A rádio saiu do C.A.R., e morreu, porque a rádio não era só o que saía para o éter, era aquela sala, aquela gente, aquele cheiro a bitoque, aquelas longas horas de puro prazer descomprometido. Quando chegou o dinheiro, a família não mais seria a mesma.
**_Gigahertz (GHz)_**
Do C.A.R. guardo memórias de um dos períodos mais estimulantes da minha vida, se excluir os anos em que aprendi piano e o dia em que subi as escadas para levantar a carta de campista. A rádio era a minha paixão. E se a rádio era (é) a minha paixão, o C.A.R. era (é) a minha paixão. Anos antes, bastantes, o meu pai frequentara aquele espaço, na equipa de xadrez. Disseram-me recentemente que integrou uma das equipas que foi campeã regional ou distrital. Não me lembro, a não ser quando olho para um livro que compila a história do desporto em Guimarães. Talvez o que me prenda ao C.A.R. seja de uma perenidade inabalável. Estou preso não àquelas paredes, corredores, tetos ou portas. Antes àquela gente que fazia o que fazia por paixão. Nesse tempo não se colocavam _likes_. Nesse tempo gostava-se.